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Síndroma Carrilho
Há uns anos, quando José Sócrates ainda era primeiro-ministro, os meus avós perguntaram-me se sabia como se chamava o ministro que «destilava veneno por todo o lado». Referiam-se então ao Ministro Augusto Santos Silva, que fora ministro da Educação e da Cultura com Guterres, dos Assuntos Parlamentares e da Defesa Nacional com Sócrates, mas mais conhecido por ser o ideólogo do regime que vigorou no período 2005-2011. Santos Silva gosta de «malhar à esquerda» e foi sempre um aguerrido fã da retórica em detrimento do conteúdo. Ora, propus então aos meus avós ouvirem na TVI24 o Manuel Maria Carrilho, ex-ministro socialista que tinha ocupado a pasta da Cultura com Guterres, que se assume um anti-Sócrates e logicamente, um anti-Santos Silva. Disseram-me que apesar de não gostarem do Primeiro-ministro, também não queriam ouvir um homem que só sabe criticar sempre a mesma pessoa, nos mesmos aspectos e moldes.
Sócrates foi um líder impactante, fruto de uma maioria absoluta sólida vinculada à vontade de uma «fera» e a um partido pouco crítico e submisso. Suas políticas foram audazes e corajosas, embora a partir de 2007 tenham em muito resvalado para a manutenção do status quo e para a conivência com a corrupção e com o clientelismo. Ainda assim, muitas reformas foram feitas durante a primeira legislatura. Se não tivessem sido implementadas, e deixássemos o país a boiar num mar encoberto até à crise internacional de 2007, hoje Pedro Passos Coelho estaria a fazer um esforço orçamental ainda maior. Dir-me-ão que Sócrates foi o principal responsável pelo galopar descontrolado da dívida pública e eu dar-vos-ei razão. Dir-me-ão que Sócrates usou esquemas financeiros para «dopar» a nosso défice e dar-vos-ei razão. Dir-me-ão que Sócrates hipotecou o futuro de Portugal e do Estado através das Parcerias Público-Privadas megalómanas e criminosas e eu dar-vos-ei razão. Porém, não querer reconhecer o mérito da racionalização da Administração Pública, das Escolas, do Sistema Nacional de Saúde; não querer reconhecer o mérito do Simplex, das Novas Oportunidades, do Plano Tecnológico; não querer reconhecer o mérito da reforma da Segurança Social, da criação da Rede de Cuidados Continuados e Paliativos ou do programa Parque Escolar é de uma idiossincrasia fascinante. Chamo-lhe de Síndroma Carrilho. Refere-se a uma patologia que, ao despertar da crise internacional e das dificuldades estruturais da economia e das finanças públicas portuguesas (que tinham sido prontamente ignoradas até 2007), contaminou de imediato toda a opinião pública, isolando por completo os deputados e militantes socialistas que se viam vinculados à disciplina de voto. De repente tudo era culpa de Sócrates.
Não nos enganemos. O reformismo (bom ou mau) patente no governo de Passos Coelho vai muito além do que foi o reformismo de Sócrates, que se conspurcou de erros por arrogância, por caciquismo partidário e por uma total inépcia em fazer políticas consistentes, sem o glamour da retórica ou das inaugurações para a comunicação social. No entanto, por alguma razão, estamos em 2012 e ainda esta semana o Secretário de Estado do Orçamento, Luís Morais Sarmento, culpou o governo de Sócrates por um acréscimo da despesa do Estado no último trimestre de 2011 (que afinal não existiu). Ainda na mesma semana, volta o campeão da cartilha anti-socrática, Manuel Maria Carrilho, para bradar em alto e bom senso que Sócrates e Sarkozy são iguais. Até faz uns jogos de palavra patéticos (Socrazy e Sarkotes), somente dignos de uma pessoa em rápida perda das suas capacidades cognitivas, não compreendendo o burlesco da sua exposição pública.
Infelizmente o Síndroma Carrilho é algo demasiado vulgar entre a população portuguesa. Entre aqueles que fazem questão de sempre mencionar as aspas apensas à palavra Engenheiro ou os outros que por reacção formaram um grupo de impenetráveis e acéfalos Socráticos, Portugal vive à deriva num período de transição democrática. O debate público ganhou algum ânimo através das louváveis consultas públicas que este governo tem feito e através da participação cívica de fundações como a Fundação Francisco Manuel dos Santos, todavia, nos meios de comunicação social o escrutínio esmoreceu-se consideravelmente. Vivemos hoje condicionados pelas directrizes da Troika e do Governo PSD/CDS. Ainda assim, creio que uma a tributação extraordinária dos subsídios dos trabalhadores do sector privado jamais faria uma manchete equivalente à do fantasma de Paris, que depois de ter sido nutrido nas cabeças dos jovens portugueses, despertaria novamente o entorpecimento da verdade em benefício da raiva, da injúria e do deliro, ou seja, o Síndroma Carrilho.