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A luta sindical é o ópio do povo!

   As últimas semanas têm sido frutíferas no que toca ao fornecimento de exemplos quanto à perversão e distorção do legado marxista. Contudo, primeiro é preciso fazer uma ressalva. Marx advogava (como escrevi no meu artigo de exposição teórica anterior) a ditadura do proletariado arremessada por uma revolução violenta. Porém, Marx era filho do seu tempo e vítima da historicidade – coexistia com dois regimes paradigmáticos: os demo-liberalismos frágeis que zelavam avidamente pelos interesses da burguesia, explorando o trabalhador – 16 horas de trabalho diárias, trabalho infantil, precariedade total, inexistência de Segurança Social (veja-se a Industrialização do Norte de Inglaterra, em que as consequências medonhas estão muito bem retratadas no livro O Caminho para Wigan Pier de George Orwell) que marcaram a Europa Ocidental desde a Revolução Francesa (1789) até ao final da 2ª Guerra Mundial (1939-45). Por outro lado, existia uma outra Europa, a central, encabeçada pelo Império Alemão (1870-1918), em que a industrialização também era crescente, mas era condicionada pela autocracia e pelo autoritarismo. Ora, para Marx, ambos os regimes, o segundo mais que o primeiro, violavam gravemente os direitos dos trabalhadores que eram a classe maioritária e os principais responsáveis pela produção (note-se que era uma conjuntura essencialmente industrial, o operário era o grande laborador – não podemos transpor esta premissa para a actualidade). Assim se justificava a proposição de um regime igualmente opressivo por Marx, ele não conceptualizava nenhum regime político que não fosse coercivo, mandatado para submeter uma parte da população.

   Ainda assim, o legado de Marx foi importantíssimo para a tentativa de empreendimento de uma sociedade inalienada, lúcida e contributiva. Edward Bernstein foi pioneiro neste aspecto. Inaugurou uma corrente de pensamento chamada o Revisionismo, em que defendia a luta democrática e partidária pelo poder por parte dos partidos marxistas, já que quando fossem eleitos, seria indutivo que o eleitorado pendia para a sociedade e economia socialistas, prescindindo da violência e do derramamento de sangue. O Revisionismo politicamente concretizou-se na social-democracia ou no socialismo democrático, ideologias que progressivamente aceitaram a existência de uma democracia pluralista, capitalista, humanista, alicerçada na concertação entre patrões e sindicatos. É este o grande legado de Marx no campo político e social, a criança de uma força política que entre o socialismo draconiano e o capitalismo selvagem promove o diálogo e o bem-estar colectivos.

   Todavia, ainda hoje, este património imaterial da humanidade é violado, um pouco por todo lado. Na América do Sul, Hugo Chavez alimenta um regime incerto, através de uma democracia musculada, em que a única entidade capaz de o parar é o povo (Chavez perdeu um referendo que inquiria os venezuelanos sobre revogação do limite de mandatos presidenciais). Crê no Bolivarianismo, pelo que na realidade se concretiza numa vasta rede de assistencialismo e de subsídios financiados pelo petróleo. Recentemente, Chavez proibiu os despedimentos até ao final do ano. Chavez esquece-se que quando o petróleo acabar ou quando a geoestratégia americana precisar, ele será deposto, e o seu povo será vítima de um “programa de ajustamento dos desequilíbrios macroeconómicos”, ou seja, muita austeridade encabeçada pelo FMI.

   Na Ásia, metade de uma península chora pela perda do “Querido Líder”, que edificou uma ditadura depauperada mas nuclear. Este homem chantageou as potências ocidentais sistematicamente, abdicando de pequenas porções do seu programa de enriquecimento nuclear em troca de bolachas e barras de cereais para o seu povo. É expectável que a classe parasitária do partido comunista norte-coreano faça os possíveis para cristalizar o regime, tirando proveitos da sua condição aristocrata. Mesmo assim, ainda subsiste a última ditadura estalinista totalitária no mundo, que é mais ortodoxa que Marx, pavoneando-se internacionalmente como uma pária nuclear, eliminado o maior propósito do Socialismo: espalhar equitativamente o bem-estar material entre a população num ambiente pacífico e harmonioso.

   Mas é em Portugal que me quero agora focar. Morreu recentemente Václav Havel, ex-presidente checo que fora fulcral na transição do regime comunista para o democracia capitalista. Lutou contra a superintendência soviética (à data da sua luta ainda permaneciam dezenas de milhares de soldados do Exército Vermelho). Ora, o PCP votou contra o voto de pesar feito na Assembleia da República, levando à saída do hemiciclo Jerónimo de Sousa aquando a homenagem em pé ao presidente checo. José Lello, deputado do PS, provocou mordazmente os comunistas perguntando à mesa se porventura não teria entrado um voto de pesar pelo “Querído Líder” norte-coreano. Embora tal facto não tenha acontecido, o PCP emitiu uma declaração de imprensa em que exprimia “solidariedade pelo povo norte-coreano”. Pergunto ao Jerónimo Sousa se não seria mais produtivo condenar um regime que mata o seu povo à fome para ter armas nucleares? Se não condena é porque ainda se encontra enclausurado no dogma estalinista que erigiu na sua mente. Como é que se pode dizer numa declaração de imprensa “[a Coreia do Norte tem] o direito que lhe assiste a determinar o seu rumo próprio de desenvolvimento em condições de paz”. Pergunto-me se o povo norte-coreano sufragou a fome e isolacionismo, em virtude da paz nuclear. Não o fez!

   Finalmente, queria deixar aqui uma nota sobre o slogan “A luta continua”, sobre a greve da CP e sobre os dirigentes como Carvalho da Silva. Há um artigo muito bom do Miguel Sousa Tavares que incide sobre o mesmo assunto chamado O fim de uma era, aconselho que o leiam, como aliás a maioria dos artigos do MST são depositários de uma grande lucidez. Há um argumento histórico que os sindicalistas usam que é preciso desmitificar. Que foi através da luta e da greve que se obteve férias pagas, direito ao fim-de-semana, seguro de trabalho, e outros direitos fundamentais do trabalhador. Sem dúvida. Eles foram conquistados e é preciso protestar quando o Ministro Álvaro Santos Pereira quer promover a competitividade aumentado o horário laboral e acabando com dias de férias. É criminoso! Todavia, cegar-nos ao ponto de fazer greve atrás de greve, alteando frases do século passado, atrasando e prejudicando o país é de uma falta de responsabilidade e solidariedade para com aqueles que sofrem na pele com o desemprego e a austeridade. Fazer greve da CP durante o Natal? Somos assim tão egoístas? Queremos chegar aos 200 subsídios (existem cerca de 195 subsídios na CP)? Queremos agravar o passivo financeiro de 13 mil milhões da CP? Já não basta a empresa pagar subsídio de assiduidade (cada trabalhador por ir trabalhar recebe mais 6 euros por dia!) e subsídio por estar há mais de X anos na empresa? Não basta auferirem salários de 2 e 3 mil euros? Não olham para o lado e vêem que o salário mínimo nacional é de 500 euros? Ignoram porque quem os sustenta não são os clientes da CP que desprezam com esta prepotência mas sim todos os contribuintes! Para além disso, o sindicato da CP é o único do país que tem um fundo para financiar greves! Pergunto ao Carvalho da Silva se os maquinistas não são uma classe possidente a explorar os restantes portugueses? Desde quando é que a palavra “luta” se aplica quando não há sacrifício pessoal mas sim um belo dia de shopping financiado pelo sindicato?

   Não me querendo alongar mais, queria deixar bem claro que a luta sindical é bem-vinda quando é pertinente. Temos que compreender que existe um meio-termo entre os disparates do Pedro Passos Coelho e a quimera de Carvalho da Silva. Já basta a incompetência a dirigir estas empresas públicas, não precisamos sindicalistas que são religiosamente laicos e socialistas e que encerram na perfeição a afirmação que agora adapto de Marx: a luta sindical é o ópio do povo!